A nota oficial da FPF foi assinada pelos dez clubes da Série A1 do PE. Imagem: FPF/divulgação.
O Clássico das Multidões no sábado terminou com vitória coral, quebrando um tabu de cinco anos, mas as manchetes acabaram sendo direcionadas para a violência horas antes. Na Rua Real da Torre, a cinco quilômetros de distância do Arruda, o encontro entre as maiores torcidas uniformizadas de Santa Cruz e Sport resultou em cenas selvageria que chocaram.
Quatro horas de reunião e uma decisão inócua
Apesar da escolta da Polícia Militar, o caminho traçado para a passagem desses integrantes resultou num confronto sem precedentes na capital pernambucana. No caso, entre membros de grupos com quadro violento e que já tinham sido renomeados após a exclusão por decisão judicial – o histórico remonta até em briga num Clássico das Multidões de portões fechados em 2020, em plena pandemia da Covid-19. A pancadaria terminou em danos ao patrimônio público, agressões, tentativas de homicídio e estupro.
Foi tudo filmando e compartilhado nas redes sociais quase em tempo real. Por sinal, a violência já estava programada pelos dois lados há dias, também nas redes. Já no estádio, com a volta da torcida visitante ao Mundão após seis anos, considerando o duelo entre Santa e Sport, nenhuma ocorrência violenta foi registrada. Nem antes, nem durante e nem depois. A resposta do Governo de Pernambuco sobre essas barbárie veio ainda no sábado, à noite.
A governadora do estado, Raquel Lyra, anunciou uma portaria com aplicação imediata proibindo a presença do público em cinco jogos oficiais do Santa Cruz e em cinco jogos oficiais do Sport. Segundo ela, a decisão foi tomada após quatro horas de reunião no Centro Integrado de Operações de Defesa Social (Ciods), com a participação de membros do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de Pernambuco – veja abaixo.
Sabemos que não há solução simples para problemas complexos. Mas sabemos que terror e barbárie não podem ser tolerados, nem normalizados.
Após reunião com representantes do Ministério Público, Tribunal de Justiça e forças operacionais de segurança, estamos determinando que:
[+] pic.twitter.com/uXPmnraYRD— Raquel Lyra (@raquellyra) February 2, 2025
Desvio de responsabilidade na segurança pública
Diante de um problema social tão grave, me espantou uma decisão tão rasa, tão inócua. Acompanhando o tema há bastante tempo, e tendo o mínimo de entendimento sobre o “código” das grandes torcidas organizadas país afora, dá pra entender que o alvo do governo foi absurdo. Atirou para o outro lado, sem pena. Com isso, o Sport, por exemplo, irá para o 4º ano seguido com algum jogo de portões fechados por atos de violência. Desses casos, apenas um aconteceu dentro do estádio – Sport x Vasco na Ilha do Retiro, pela Série B de 2022. Naquele caso, a responsabilidade, desportiva inclusive, realmente cabia ao clube.
Mas na cidade inteira? Em atos a vários quilômetros do jogo? Seis horas antes? Me parece um tanto evidente que isso é questão de segurança pública, cujo esquema montado com 645 policiais foi insuficiente no último sábado. De acordo com os registros oficiais, 12 pessoas ficaram feridas e 32 foram detidas – sendo 13 autuadas em flagrante. Pela escala das imagens, a detenção ficou aquém do que se viu. Até porque, hoje, a Secretaria de Defesa Social (SDS) tem um aparato tecnológico suficiente para identificar mais gente.
Já há uma investigação silenciosa fazendo isso? É o mínimo que se espera. Por isso, a decisão anunciada foi apenas uma resposta populista do comando executivo de Pernambuco, cuja eficácia tende a ser tênue. O que acontece, aí sim de forma imediata, é o bloqueio (e a criminalização) de uma cadeia socioeconômica que vai além da dinheirama que rola no futebol profissional. Vai do vendedor de espetinho no entorno do estádio aos funcionários mais humildes na operação de uma partida, sem contar o tanto de gente sem qualquer histórico de violência que acabou penalizada por um período muito além do razoável.
Impacto econômico severo no futebol
A minha impressão é que quem sugeriu esse número de “cinco jogos” não faz a menor ideia do impacto que isso pode gerar num clube. No STJD, por exemplo, a pena máxima é de 10 jogos. E basicamente nunca é aplicada. Quando acontece, o clube recorre e ainda consegue diminuir. O supracitado caso do Sport foi de oito jogos de portões fechados, mas depois caiu para seis, com metade disso sendo liberado para mulheres e crianças. Agora vamos transformar isso em números de fato. Em 2025, o Santa Cruz já fez, curiosamente, cinco jogos no Arruda. Foram quatro pelo Estadual e um pelo Nordestão.
Ao todo, o clube tricolor arrecadou R$ 3.563.445 com bilheteria. Média de R$ 712 mil, um número bastante expressivo, ainda mais na condição atual de um clube pré-SAF, com a venda de ingressos sendo uma fonte de renda vital. E olhe que ainda teve receita de bar, centenas de novos sócios cadastrados nos jogos e ativações. É disso pra zero agora? Sem mover um dedo para quem realmente cometeu atos criminosos, seja no viés educativo ou punitivo, o próprio governo do estado estaria inviabilizando o Santa Cruz. Pelo calendário de jogos, o time tricolor poderá jogar sem público numa eventual final do Campeonato Pernambucano. Em que isso melhoraria a segurança pública?
Na verdade, seria um atestado público, com alcance nacional, da incapacidade do governo de conduzir um jogo. Isso já aconteceu sábado e a medida tende a expandir esse despreparo. Ao Sport, que era visitante no clássico e cuja presença no Arruda foi de apenas 1.400 pessoas, a pena imposta pelas autoridades coloca mais uma temporada sem a totalidade do seu mando de campo. Como se algo assim fosse normal. Em 2024, o atentado ao ônibus do Fortaleza, num jogo da Copa do Nordeste, aconteceu a sete quilômetros da Arena PE. A gravidade foi tanta que mudou a lei desportiva, com todo o traslado dos times fazendo parte da segurança. Segurança esta que também faltou ao governo naquela noite.
Poder público precisa ir além do CNPJ
Além da gravidade, o caso ocorrido após o jogo entre Sport e Fortaleza precisa ser relembrado porque um dos envolvidos no sábado já tinha sido autuado naquele episódio. Então, chegamos ao “X” da questão. Em vez de punições sistemáticas ao “CNPJ”, como Raquel Lyra fez agora, falta um trabalho de inteligência para prevenção e repressão aos membros envolvidos. No caso, um trabalho focado no “CPF”, no indivíduo mesmo. Inclusive em quem financia isso, direta ou indiretamente, e tendo ou não participação nos clubes.
Essa punição de cinco jogos às duas instituições é para gerar tempo de implantação do cadastro biométrico e do reconhecimento facial? Mas os clubes já vêm fazendo isso, até porque em breve será regra nos palcos a partir de 20 mil lugares, casos do Arruda e da Ilha. Sem contar que essa medida, que de fato moderniza o acesso aos estádios, já existe em outros estados, mas não foi a senha para o fim das brigas das uniformizadas.
Afinal, o futebol propriamente dito nunca foi a prioridade para os criminosos “infiltrados”. Perder uma bateria ou uma faixa é uma derrota muito maior que perder um clássico na bola. Enquanto o estado, seja com Raquel Lyra ou qualquer outro gestor, continuar vinculando criminosos recorrentes ao futebol, a única punição será somente ao futebol. Como agora. Tentativa de homicídio é tentativa de homicídio. Estar vestido com a “beca” não atenua isso.
Resposta dura da federação e dos clubes
Escrevi esse texto com certo tom de revolta, admito, já que os casos de violência e as ações governamentais no Recife lembram o “Dia da Marmota”, um evento que ocorre no filme “Feitiço do Tempo”, de 1993. É uma repetição sem fim, com respostas iguais para ações iguais. Ao menos dessa vez, para minha surpresa, a FPF publicou uma nota oficial, dois dias depois e com apoio dos dez times do Campeonato Pernambucano, discordando da decisão.
A nota diz que a “medida, além de desproporcional, penaliza injustamente milhares de torcedores e toda a cadeia de trabalhadores que dependem do futebol para sobreviver, além de clubes que nada têm a ver com os episódios de violência ocorridos no último sábado”.
No último parágrafo, aumentando o tom, a nota diz que a “governadora foi induzida ao erro”, além de requerer a revisão da medida. De fato, foi mesmo uma decisão esdrúxula, que não combate o que tem que combater e ainda oprime, de forma direta, as duas maiores torcidas do estado, num movimento político que dificilmente não terá consequências.
Abaixo, veja a análise do Podcast 45 Minutos sobre a segurança pública em jogos de futebol.