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A representação do The Oval, a sede das primeiras decisões da FA Cup, ainda no século XIX.

Composta por seis capítulos, a série “The English Game” entrou no catálogo da Netflix em 2020. A premissa é bem interessante, contando os primórdios do futebol na Inglaterra, do jogo restrito à elite londrina até a proliferação de times representando cidades e usinas ao redor do país – em muitos casos eram basicamente a mesma coisa, desde a Revolução Industrial.

A história começa em 1879, na disputa da Copa da Inglaterra, o torneio de clubes mais antigo do mundo – em disputa desde 1872. Nesta primeira temporada, sem dar spoilers (assista à série, vale a pena), o roteiro toma como base a primeira grande campanha de um time “proletário”.

Considerando as várias nuances do que isso significou na época, tracei um paralelo com os primórdios do futebol pernambucano. É impressionante como as transformações foram basicamente as mesmas aqui, mas com quatro décadas de diferença. Na história da tevê, os cenários vão de 1879 a 1885. No blog, o texto trata do período de 1915 a 1919, nas primeiras edições do campeonato estadual, período já marcado pelas evoluções acerca do jogo.

A seguir, os comparativos do blog. Alerta de spoiler sobre a série!

1) Um profissional entre amadores
Na série, Fergus Suter (abaixo, à esquerda) e Jimmy Love (à direita) deixam a Escócia, em 1879, para atuar no Darwen FC, no norte da Inglaterra. Como receber dinheiro para jogar futebol (vulgo profissionalismo) não era permitido, eles foram contratados pelo dono da fábrica de algodão que empregava basicamente toda a cidade, com 170 funcionários. Só que ele também presidia o time.

No Recife, foi praticamente o mesmo que aconteceu em 1916, quando o Sport trouxe o zagueiro Paulino, do América do Rio de Janeiro – o centro mais desenvolvido do país na época. Para evitar arestas com os rivais, a diretoria leonina publicou um telegrama do jornal carioca Correio da Manhã, no qual Paulino exercia a função de linotipista. Uma prova para que ele seguisse como operador numa gráfica recifense. Atuando pelo rubro-negro, o jogador acabou ganhando o 1º título estadual do clube. Pioneirismo ou regras ignoradas? A série trata disso do início ao fim.

2) A evolução dos uniformes
Os primeiros times tinham basicamente o mesmo modelo de camisa, com apenas um cor, tendo com o longo calção (ou mesmo calça) tendo outra cor. As listras horizontais e verticais, tão presentes hoje em dia, começaram a aparecer no futebol como as “características” de cada time, a partir de novas fábricas de tecelagem. E antes da virada do século, do XIX para o XX, o design sofreu a primeira grande evolução, com golas amarradas com cadarços (à esquerda na imagem abaixo).

No Recife, quando Guilherme de Aquino Fonseca, o introdutor do futebol na cidade, trouxe a bola, os uniformes e as regras, em 1905, as camisas do Sport ainda eram não tinham a gola em “V” – já as primeiras fotos de Náutico (1910) e Santa Cruz (1917) já trazem as camisas mais “modernas”.

3) Bola com o mesmo tamanho. Já o peso…
A bola, cujo tom marrom durou quase um século, absorvia bastante água nos primeiros anos. Consequentemente, atrapalhava o desenvolvimento do jogo. Tanto que a série trata da existência dos primeiros treinos com a bola seca e com a bola molhada, prevendo jogos sob chuva. Na época da série, a bola já usava bexiga de borracha – criada em 1862. Curiosamente, a circunferência da pelota, entre 27 e 28 polegadas, ainda é a mesma da regra atual, mas com produtos bem mais leves (não por acaso, o peso atual não pode variar muito mesmo em caso de chuva).

4) Um legítimo campo de várzea
Campo sem marcações e traves de madeira sem rede e sem tinta – destoando mesmo, só o árbitro de terno e cartola. Em vários casos, os gramados não eram sequer nivelados – em determinado momento na série, na chegada de Suter ao Blackburn, o nivelamento é tratado como um “diferencial” do clube, mais estruturado que o anterior. É possível ver na série alguns campos com grama bem alta. Hoje, seria um campo de várzea – em alguns casos, nem isso.

No Recife, o primeiro espaço para o futebol foi o “Campo do Derby”, em frente ao Batalhão da Polícia Militar, no bairro do Derby. Lá, com as mesmas características arcaicas, ocorreu o primeiro jogo oficial na cidade, com o amistoso entre Sport e English Eleven, um combinado de ingleses que trabalhavam na capital – empate em 2 x 2, no dia 22 de junho de 1905. No mesmo local, dez anos depois, em 1º de agosto de 1915, ocorreu o primeiro jogo do Estadual, com o Santa vencendo o Coligação por 1 x 0, gol de Mário Rodrigues. Ah, o campo ainda existe.

5) De “ground” a “stadium”
A imagem abaixo mostra a arquibancada de madeira construída pelo Blackburn, uma novidade no norte inglês. Entretanto, o grande palco do futebol ficava no centro do país. Das 21 primeiras finais da Copa da Inglaterra, a “FA Cup”, o The Oval, em Londres, recebeu 19 edições. Entre 1872 e 1892, o campo foi o sonho dos times ingleses. Foi durante anos o principal estádio. Embora a alcunha não fizesse sentido no início, com apenas 2 mil lugares. O primeiro jogo acima de 10 mil pessoas, após algumas obras, aconteceu em 1885.

Na capital pernambucana a lógica foi a mesma, com o público em pé ao redor do campo cercado de árvores. A história mudou com a inauguração do primeiro “estádio” de fato, em 1919, o Campo da Avenida Malaquias – hoje, ficaria próximo ao Parque da Jaqueira. A estrutura de madeira e ferro, com capacidade para 2 mil pessoas sentadas, foi comprada pelo Sport junto ao Fluminense, do Rio. O clube carioca se desfez da estrutura após inaugurar as Laranjeiras, com arquibancadas de concreto, no mesmo ano. Todo o material do primeiro estádio do Sport veio de navio, sendo o principal palco local até a inauguração da Ilha do Retiro, em 1937. Se o Campo da Avenida Malaquias sumiu, o The Oval ainda existe. Hoje com 25.500 assentos, o stadium no sul de Londres recebe jogos de críquete.

6) Senhores, senhoras e operários na tribuna
O primeiro capítulo da série mostra um jogo prestigiado pela elite, através do Old Etonians. Senhores de terno e gravata, senhoras de sombrinha e confraternização após o jogo. Ao longo da série, fica claro que o futebol seria a paixão de muita gente, sem o controle da elite – que tentou manter isso, em prol de uma “não violência” no esporte. Embora este processo tenha ocorrido bem antes da chegada do esporte em PE, o cenário local passou por algo semelhante, com o “football” restrito a estudantes da elite recifense, vários deles com estudos na Inglaterra, e trabalhadores britânicos – das companhias que construíram ruas, ferrovias e o sistema elétrico na cidade.

De certa forma, isso caracterizou os primeiros jogos entre Náutico e Sport, cujo primeiro clássico ocorreu em 1909, com vitória do timbu por 3 x 1 e confraternização após o jogo no British Club – onde hoje é o Museu do Estado. Se o Blackburn simbolizou, na série, a reunião de outras classes, aqui esse papel coube ao Santa Cruz, em 1914, fundado sem qualquer distinção social. Assim como serviu para popularizar o Blackburn, também foi a base da enorme popularidade tricolor.

7) O foot-ball ganhando espaço nos jornais
No começo da história televisiva, chama a atenção a rápida entrevista concedida por Arthur Kinnaird, destaque do Old Etonians, sobre a expectativa para o próximo jogo. Sim, era o início da cobertura esportiva. No fim do século XIX, na Inglaterra, já havia repórter para ouvir depoimentos dos principais jogadores do país – e com uma imprensa bem mais presente na vida social.

Enquanto isso, nas duas primeira décadas do século XX, no Recife, a cobertura do futebol brigou bastante por espaço com o turfe, que dominava a página esportiva dos principais periódicos, Diario de Pernambuco e Jornal Pequeno. No começo, apenas o anúncio dos jogos e os resultados. Com o Campeonato Pernambucano se consolidando no calendário, vieram as escalações e as primeiras resenhas dos jogos – repletas de termos ingleses e relatos do ambiente festivo.

8) A primeira grande vitória do “Norte”
Entre 1872 e 1882, apenas times ligados à elite conquistaram a Copa da Inglaterra. A vitória do Blackburn sobre Old Etonians por 2 x 1, na prorrogação, está na história. Porém, a série não deixa claro que se trata do Blackburn Olympic, e não do Blackburn Rovers, o time mais famoso e que logo depois seria tricampeão do torneio – por sinal, Suter jogou apenas no Rovers, com um “ajuste” no roteiro para a tevê. De toda forma, aquele foi o primeiro triunfo de um time de operários sobre uma equipe da elite universitária, mudando a visão do esporte sobre a região de Lancashire, no Norte. É possível enxergar um paralelo com um jogo em 1919, quando Santa Cruz tornou-se o primeiro time do Nordeste a vencer um grande clube do eixo Rio-São Paulo.

Num amistoso em 30 de janeiro de 1919, a cobra coral venceu o Botafogo por 3 x 2, com o atacante Pitota marcando aos 45 do 2º tempo, numa Malaquias repleta. O triunfo, que valeu até troféu, foi considerado por anos o maior do estado. Eis um trecho do Jornal Pequeno: “Pernambuco, na sua vida desportiva, nunca assistiu a um espetáculo tão grandioso, tão imponente, tão brilhante, que enchesse o coração de todos os seus filhos em especial contentamento, que passasse as raias do delírio, como o fortíssimo embate de hontem”. Confira o post aqui.

9) O profissionalismo oficializado
Protagonista da série, Fergus Suter é reconhecido como o primeiro jogador profissional da história do futebol, tendo mudado de clube duas vezes antes mesmo da profissionalização de fato. Após bastante discussão, a The Football Association (FA), a “CBF” da Inglaterra, acabou permitindo a utilização de jogadores profissionais, sem restrição, a partir de 1885 – Suter mudou de time em 1878 (Partick/Darwen) e 1880 (Darwen/Blackburn). Neste período, como trata The English Game, a rusga entre amadores e profissionais foi um marco na história, com vários times amadores permanecendo assim até hoje – caso do Old Etonians, também retratado.

No Brasil, este processo só foi acontecer, de vez, na década de 1930. No Rio e em São Paulo, o Estadual chegou a ter dois campeões por ano, um amador e um profissional, até a unificação. Em Pernambuco o processo foi mais tranquilo, sem títulos paralelos. Aqui, o amadorismo seguiu até 1936, com outros clubes inscrevendo atletas em empresas – volta e meia isso terminava em confusão na Liga Sportiva Pernambucana, a atual FPF. No estado, o profissionalismo foi instituído oficialmente em 1937, quando o Central de Caruaru contratou o zagueiro Luiz Zago, junto ao Atlético Mineiro, com salário de 600 mil réis. Pela mesma lógica, visando uma equiparação na competitividade. Zago, o Suter pernambucano, embora este papel também caiba em Paulino…

Já assistiu à série? O que você achou? Deixe o seu comentário.


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