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A temporada recifense do menino Pelé
Cassio Zirpoli

O telegrama enviado por José Rozenblit foi entregue na Vila Belmiro em 1957 através do serviço executado pela Western Telegraph. Eram apenas duas frases. Modesto Roma, inteirado sobre o assunto, foi até o campo de grama alta e assobiou em direção a um franzino rapaz de 17 anos. “Pelé, chega mais”. Suado, já com a camisa na mão, Edson se aproximou, desconfiado como bom mineiro. Nem falou. Só ouviu. “Prepara a tua mala que você irá passar um tempo no Recife”. O juvenil arregalou os olhos. Antes de imaginar qual seria o seu novo clube ou a distância da cidade em relação à Baixada, já bateu a saudade de Seu Dondinho, seu pai e grande incentivador.

Pelé, o curioso apelido ganho ainda quando criança, era uma grande promessa do Santos. Faltava cancha para disputar o Campeonato Paulista, acreditavam os dirigentes do clube do litoral. A amizade entre o rubro-negro Rozenblit e o santista Roma viabilizou a solução, com um tempo em Pernambuco, no disputado campeonato citadino, com clássicos cada vez mais populares. Inicialmente, seriam apenas quatro meses. O tal telegrama era bem claro. “Queremos o garoto Pelé. Quatro meses de contrato e negociação para a renovação de mais oito meses, grato.”

O jogador chegou no Recife sem alarde e logo foi inscrito no Estadual. Na reta final, sem espaço, viu o Sport ser derrotado pelo Santa Cruz. Valeu a experiência de ter sentado no banco de reservas. Acreditava estar preparado para voltar a São Paulo. Conforme a negociação previa, não retornou. Com o certame terminando somente no ano seguinte, sem muito tempo de preparação, Dante Bianchi, o severo técnico do Leão, tentou implementar o ousado plano de jogo da Seleção Brasileira. Em vez de quatro jogadores na linha ofensiva, uma linha de ataque com três nomes. Ponta direita, ponta esquerda e o centroavante. Na Ilha do Retiro, já brilhavam Pacoty e Traçaia. A última vaga estava aberta há tempos.

Técnico além da conta, de atrair torcedores para os treinos, o atacante juvenil logo ganhou a sua vaga. A vida, contudo, seguia simples, alojamento/campo, campo/alojamento. Certo dia, Pelé foi até o terraço da sede. Era 4 de maio de 1958 e outros jovens atletas e sócios leoninos acompanhavam via rádio o primeiro jogo da Seleção Brasileira no ano da Copa do Mundo. Que apresentação! No Maracanã, 5 a 1 sobre os paraguaios, com show do palmeirense Mazzola , autor de três gols. “Joga muito esse aí. É outro nível, entende?” A timidez deu lugar ao sorriso fácil, às cantorias com violão antes dos jogos. O menino foi ganhando personalidade.

Quatro semanas depois, após muito tempo de espera, surgiu a primeira chance como titular. O estádio apanhou um bom público. Os jornais locais já noticiavam os feitos do “menino de Santos” – mas natural, na verdade, de Três Corações, em Minas. Contra o Íbis, o Leão arrancou de forma impiedosa, 5 a 0. Acredite, Pelé marcou cinco gols. Pé direito, pé esquerdo, cabeça, rebote e driblando toda a zaga do pássaro preto do subúrbio. O abraço de Pacoty, o apoio de Traçaia e o público de pé, aplaudindo. Tardes assim seriam uma rotina. Enquanto os dirigentes paulistas – cientes do talento extraordinário – tentavam antecipar a volta da revelação, o presidente do Sport, Adelmar da Costa Carvalho, assegurava o cumprimento do documento registrado na FPF.

Em 29 de junho, o Brasil enfim conquistaria o sonhado título mundial, numa apertada e inesquecível vitória sobre a Suécia em Estocolmo, 2 a 1. Na volta, a primeira escala no país seria, curiosamente, no Recife, três dias depois. Festa nas ruas da capital, com a delegação no aeroporto. Único santista no elenco campeão, Zito enviou uma mensagem ali mesmo. “Pelé, eu sabia de toda a tua dedicação em Santos. Esse título mundial também é para você. Jogaremos juntos em breve”. Mensagem recebida, quase um presente. Após ser campeão pernambucano de 1958 com 41 gols marcados, à frente de Pacoty (36) e Traçaia (11), num recorde ainda em vigor, Pelé deixou a torcida rubro-negra órfã. No ano de ouro do futebol brasileiro, se dizia que jamais haveria um ataque como Garrincha, Vavá e Mazzola. E nem como Pacoty, Traçaia e Pelé.

A história real
O telegrama do Santos oferecendo Pelé ao Sport de fato existiu, datado em 05/11/1957, com texto abreviado (pelo custo elevado de cada caractere). Eis o trecho: “prezado amigo possibilidade empréstimo Ciro idem Pelé 4 meses”. Posteriormente, Rozenblit agradeceu a oferta e recusou o “jovem desconhecido”. Pelé explodiu no futebol em 1958, marcando 58 gols no Campeonato Paulista e seis no Mundial, com o inédito título após uma goleada na decisão. No Recife, que de fato recebeu a carreata da Seleção, o Leão foi o campeão pernambucano do ano, com Pacoty como artilheiro, com 36 gols. O recorde de um goleador local segue com 40 gols, marca alcançada três vezes (com Baiano, em 1982 e 1983, e Luís Carlos, em 1984).

Fiz o texto fictício para uma série especial “E se…”, publicada no Diario de Pernambuco em 2014. Republiquei no blog no embalo das retransmissões do Mundial de 1958 no SporTV, em 2020. A seguir, textos de escritores famosos sobre o mesmo tema, publicados no mesmo jornal em 23/01/2000, quando o telegrama foi revelado pelo jornalista Sérgio Miguel Buarque.

Pelé seria ainda mais Pelé!
Luis Fernando Veríssimo

Combinado que em qualquer outro lugar o Pelé ainda seria Pelé, o que mudaria mesmo seria a história do Sport. O Santos, claro, não era só Pelé, mas foi ele o responsável pela projeção mundial do clube. O Sport teria tido a mesma projeção com Pelé no time? Naquela época havia pouco intercâmbio entre os times do Brasil, era raro times de fora de São Paulo e Rio serem notados, ou terem jogadores convocados para a Seleção. Se jogasse no Sport, Pelé não teria sido convocado para a Seleção de 58. Pelé teria que jogar mais do que jogou no Santos para ser notado. Conclusão: se Pelé tivesse ido para o Sport, seria obrigado a ser melhor do que foi. Pelé seria ainda mais Pelé!

Sorte do goleiro do Íbis
Xico Sá

Existem dois tipos de traição que não prescrevem nunca – a da mulher da sua vida e a do time do seu coração. Para evitar maiores constrangimentos durante o cozido dominical, tratemos apenas do segundo crime. E que traição dos velhos cartolas, senhores. Chifre é pouco. Último a saber, sonhei as últimas noites com as manchetes épicas que teriam sido possíveis. Leão conquista a América. Rei da Ilha humilha a Europa. Sport para a guerra em excursão à África. Pernambuco é bi do mundo…

Mas também fiquei pensando nas desgraças que isso poderia representar. Sonhei com um texto, no melhor futebolês: “Em tarde infeliz, o camisa 10 do Leão da Praça da Bandeira balançou apenas 15 vezes as redes do Íbis…”. Perdemos Pelé, numa bobeada imperdoável da cartolagem. Por ironia, os deuses do futebol ainda nos presentearam, tempos depois, com outro rei, Dadá Beija-Flor. Não conquistamos a América, não humilhamos a Europa, mas os goleiros do Santo Amaro e do pobre Íbis… sofreram como o diabo.

Minha sorte, nessa história toda, é que, graças a tios nordestinos que migraram para São Paulo nos anos 60, tive a felicidade de ganhar uma camisa do Peixe ainda menino, o que permitiu usufruir de todas as glórias da era Pelé. Naquele tempo já era Sport, por causa do Guarani de Juazeiro, que tinha as mesmas cores, o meu escudo, a mesma torcida cri-cri e o apelido de “O Leão do Mercado”, em virtude da paixão dos feirantes pelo time.

Promessa de amor do Rei
Raimundo Carrero

Foi uma jura de amor. O raquítico Dico, ainda não transformado em Pelé, coberto apenas por um calção de veludo vermelho, bordado em lantejoulas, e exibindo sandálias imperiais de pom-pom, basta cabeleiras escaracolada, perdeu-se de paixão por uma garotinha que, recém-nascida, passeava nos braços da mãe na sede do glorioso Sport Club do Recife. Ele havia chegado ao Recife a bordo de um teco-teco, especialmente contratado para trazê-lo aos gramados pernambucanos, terror do tricolor Adelmar e do alvirrubro Caiçara.

Naquele instante, no solo sagrado do Leão e sob o testemunho do incandescente sol nordestino, Pelé vislumbrou a glória que haveria de se abir aos seus pés, e num gesto cavalheiresco, ajoelhou-se perante a garotinha, gritando: “Serei rei, ó bela dos meus olhos. Retornarei ao Recife para desposá-la, ó sonho dos meus sonhos, linda dama dos cabelos dourados”.

Naquele instante, num fenômeno da natureza, apareceu no céu a estrela Assíria. Anos depois, coroado rei nos estádios do mundo, Pelé voltou ao Recife, depois de enfrentar deuses e monstros, mouco ao cântico das sereias, e ainda no Aeroporto dos Guararapes, gritou apaixonado: “Voltei, minha princesa”. Casou-se com Assíria Seixas na Igreja Episcopal. E foram felizes para sempre.


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